Químicos do ABC resistiam à ditadura com a luta pela saúde
O médico do trabalho Herval Pina, homenageado no evento, foi médico do Sindicato dos Químicos do ABC nos anos 1980.
Leia abaixo a cobertura completa do evento na Fundacentro
“À mesa, ao cortar o pão / O operário foi tomado / De uma súbita emoção / Ao constatar assombrado / Que tudo naquela mesa / – Garrafa, prato, facão — / Era ele quem os fazia / Ele, um humilde operário, / Um operário em construção. / Olhou em torno: gamela / Banco, enxerga, caldeirão / Vidro, parede, janela / Casa, cidade, nação! / Tudo, tudo o que existia / Era ele quem o fazia / Ele, um humilde operário / Um operário que sabia / Exercer a profissão”.
O poema de Vinicius de Moraes, O Operário em Construção, de 1959, mostra um trabalhador que descobre sua importância no mundo e aprende a dizer não. O texto foi declamado pelo artista Tin Urbinatti durante o Seminário 60 anos da Ditadura Militar: explosão de acidentes e as resistências na área de segurança e saúde no trabalho, realizado pela Fundacentro em 22 de novembro de 2024, em sua sede em São Paulo/SP.
O debate mostrou como os trabalhadores foram silenciados durante a ditadura militar brasileira, entre perseguições políticas e ações que viam os trabalhadores como culpados pelo seu próprio acidente do trabalho. Em 1975, foram registrados 1.916.187 acidentes do trabalho pelo então INPS (Instituto Nacional de Previdência Social), fundado em 1966, mesmo ano de instituição da Fundacentro. O número correspondia a 14,74% da força de trabalho formal da época.
O alto índice marcou a ditadura empresarial-militar, termo defendido na exposição da coordenadora de Projetos da Fundacentro, Luci Praun, por caracterizar o regime com a qualificação de seu componente militar assim como de seu componente civil. “Esse é um golpe contra a classe trabalhadora”, defende. O termo deixa mais clara a participação das empresas no regime, em que houve um processo de colaboração que as beneficiaram economicamente.
Participaram pesquisadores, houve exibição de vídeo com recortes de filmes sobre condições precárias de trabalho, realizado pelo IIEP (Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas), trechos de documentários de Beto Novaes, depoimentos de trabalhadores presentes no evento e dos médicos Herval Pina, por carta, e Edith Seligmann Silva, por vídeo. Herval e Edith foram homenageados pela contribuição que deram à Saúde do Trabalhador, atuando em prol de trabalhadores e trabalhadoras durante a ditadura militar, caminho que continuaram seguindo com a abertura política.
“Desde os 16 anos encontrei um caminho para o qual viveria. Minha causa seria a de melhorar a vida das pessoas. Escolhi a medicina e fiz dessa profissão meu instrumento de luta”, escreve o médico. “Fui caçado, preso e perseguido. Entrei para a clandestinidade, sai e depois voltei ao país. Vi amigos sumirem, ou serem, presos e torturados. (…) Trabalhei para reconstruir a previdência social, atendendo as reais necessidades de quem trabalha. Minha jornada contou com o apoio dos sindicatos e organizações criadas, em prol da saúde dos homens e mulheres desde rico país. Atuei firmemente, contra os acidentes de trabalho e adoecimentos laborais da classe trabalhadora”, completa Herval Pina.
Já a médica psiquiatra Edith Seligmann fez relato sobre atendimentos realizados no Hospital Estadual de São Paulo na década de 1970 às professoras, que sofriam por transtornos mentais relacionados ao trabalho. Elas tinham várias turmas, excesso de alunos e de trabalho levado para casa. Algumas passavam por situações de repressão da ditadura, com familiares presos ou desaparecidos, o que não podia ser mencionado.
“Muitas professoras viviam um trabalho muito extenuante, situações de trabalho que levavam ao esgotamento emocional, que recebe o nome de burnout hoje em dia”, relata Edith. “Junto com as condições de trabalho adoecedoras existia uma repressão, que às vezes as levavam a quadros mentais mais graves, além do burnout, depressões mais severas por exemplo”, completa.
Também conta de pesquisas feitas com trabalhadores, na década de 1980, junto ao Diesat (Departamento Intersindical de Estudos e Pesquisas de Saúde e dos Ambientes de Trabalho). “Nessa época, fizemos os primeiros estudos que mostravam existir desgaste mental”. Houve relatos sobre ocorrência de até torturas dentro de empresas.
“Nós ouvimos relatos de repressão dentro dessas empresas, uma militarização da vida laboral, com disciplina muito rígida e controle grande, um excesso de exigências que levavam a acidentes que não eram reconhecidos como resultado das condições de trabalho inadequadas e do excesso de trabalho”, recorda a médica sobre falas de trabalhadores de Cubatão/SP e de uma siderúrgica em São Paulo/SP.
“Outra coisa muito séria, por exemplo, dessa siderúrgica de São Paulo, os trabalhadores relataram a existência de um cárcere, uma prisão dentro da própria empresa, para onde as pessoas que reclamavam de situações de trabalho eram levadas e sofriam castigos físicos, quer dizer, recebiam pancadas, eram espancadas”, denuncia Seligmann Silva.
Ato inseguro e acidentes do trabalho
O conceito de ato inseguro ainda hoje reverbera negativamente na vida de trabalhadores e trabalhadoras, quando eles são considerados culpados pelos acidentes do trabalho dos quais são vítimas, sem se levar em conta as condições de trabalho, a pressão por resultados, o papel da empresa e a multicausalidade dos casos. A questão permeou diversas apresentações do evento, já que na década de 1970 esse era um conceito internacionalmente vigente e difundido pela Fundacentro na época, que teve o papel de educar o trabalhador.
Documentos da época afirmavam que 80% dos acidentes tinham causa humana. O trabalhador era visto como o agente do ato inseguro. Em pesquisa do Caaf/Unifesp (Centro de Antropologia e Arqueologia Forense/Universidade Federal de São Paulo), Luci Praun estudou a colaboração da Petrobras e a ditadura militar. “Há toda uma documentação relacionada à eleição do operário padrão, um dos critérios é aquele preocupado em combater o ato inseguro”.
No entanto, dados apresentados pela pesquisadora aposentada da Fundacentro, Arline Arcuri, mostram que entre 1964 e 1974 os trabalhadores perderam 41% do valor real de seus salários, do seu poder de compra. Além disso, houve redução dos gastos dos empresários em itens de segurança no ambiente de trabalho, com elevação significativa de acidentes de trabalho durante a ditadura.
“Ocorre 60 mil mortes de trabalhadores no período, com destaque ‘aquelas ocorridas nas grandes obras promovidas pela ditadura. Na construção da Ponte Rio Niterói, segundo dados oficiais, foram registradas as mortes de 35 trabalhadores e nas obras da hidrelétrica de Tucuruí, 197 trabalhadores faleceram em virtude de acidentes de trabalho’”, afirma Arline, com base em pesquisa do professor de história da Universidade Rural do Rio de Janeiro, Pedro Campos.
Na Usina Hidrelétrica de Itaipu, segundo dados oficiais da empresa, entre 1978 e 1984, aconteceram 43.530 acidentes do trabalho, sendo 106 fatais, mas, em entrevista, um técnico de segurança do trabalho apontou que até 800 pessoas morreram nas obras, e os arquivos que traziam estas informações estavam armazenados em locais que foram incendiados.
Neste cenário, o Boletim Informativo da Fundacentro, criado em 1969, e a partir de 1979, denominado Fundacentro Atualidades em Prevenção de Acidentes (Fapa), noticiava o “combate” aos acidentes de trabalho com metáforas de guerra. É o que aponta a apresentação da analista em ciência e tecnologia da Fundacentro, Cristiane Reimberg. Ela usa dados de pesquisa que realizou para o livro Fundacentro – Meio século de Segurança e Saúde no Trabalho.
O conceito de ato inseguro era disseminado por esses veículos, conforme a dissertação de mestrado “O trabalhador imprevidente: estudo do discurso da Fundacentro sobre o acidente de trabalho”, de Laurita Santos. Para a historiadora Juliana Monteiro, a abordagem tradicional da análise de acidentes de trabalho baseada no ato inseguro norteou a educação prevencionista difundida pela Fundacentro no início de suas atividades nas décadas de 1970 e 1980.
“Por outro lado, havia vozes dissonantes, como a do médico do trabalho René Mendes, que criticava a predominância de falas sobre atos inseguros em vez de condições inseguras”, afirma Reimberg.
Do luto à luta
Luci Praun aponta que a supressão dos espaços de resistência e a militarização dos locais de trabalho, com prisões e torturas de trabalhadores, ocorreram a partir de 1964. Uma lista prévia ao golpe trazia 194 trabalhadores listados da Petrobras. Em seis meses, consideravam 3000 suspeitos, sendo 1500 investigados e mais de 500 demitidos.
O diretor de Conhecimento e Tecnologia, Remígio Todeschini, apresenta dados de Relatório da Comissão Nacional da Memória, Verdade e Justiça da CUT (Central Única dos Trabalhadores): 56 trabalhadores e sindicalistas mortos pelo regime de 1964 a 1985. Entre 1964 e 1970, 536 sindicatos sofreram intervenção militar. O fim do direito de greve foi decretado logo no início, com a Lei 4.330/64.
O processo de luta foi apresentado por Carlos Clemente, coordenador do Espaço da Cidadania. Ele conta como o movimento de trabalhadores de 1979 levou à criação do Diesat e começou alcançar mudanças, como a redução da jornada de trabalho que na época era de 48 horas semanais. Outro problema da época era a demissão de trabalhadores que se acidentavam assim que retornavam ao trabalho.
Na Primeira Semana de Saúde do Trabalhador, ocorrida em 1979, Clemente recorda ter ouvido relatos dramáticos de trabalhadores sobre acidentes do trabalho. Na época, havia contaminações por conta de benzeno, casos de silicose em cerâmicas e bissinose na indústria têxtil, doenças pulmonares causadas pelas poeiras de sílica e de algodão, respectivamente.
Para os trabalhadores terem noção do que era um adoecimento relacionado ao trabalho foi criado o Gibi dos Trabalhadores, com ilustrações da Laerte. Também se elaborou documento com 31 recomendações dessa primeira semana em que se debateu a saúde do trabalhador.
“Na ditadura, os Sesmts [Serviços Especializados de Segurança e Medicina do Trabalho] ficavam engessados em sua ação. Não havia afastamento por doenças profissionais, que foram fortemente subnotificadas. Com a luta de alguns sindicatos, como o dos Químicos do ABC e dos Metalúrgicos de Osasco, houve greves naquele período exigindo mudanças nas condições de trabalho. Essa mobilização resultou, por exemplo, na criação do Programa de Saúde do Trabalhador na rede pública no ABC em julho de 1984″, avalia Remígio Todeschini.
O Seminário da Fundacentro também trouxe relatos de trabalhadores, que compartilharam suas memórias de como era o trabalho na época da ditadura militar e de como os trabalhadores eram silenciados diante dos acidentes e mortes. “Sindicato encobria. Não tinha para quem recorrer”, conta José Felix da Silva, que atuava em uma siderúrgica, ao lado de Raimundo Perillat, que foi supervisor de segurança e atuava na Pastoral Operária.
Eliezer João de Souza, que chegou em São Paulo em 1965 e foi trabalhar com amianto destaca que a Eternit fazia radiografia do pulmão da fábrica toda em Osasco/SP. “A gente nunca viu uma chapa dessa. Fui da Cipa e não sabia que o amianto era cancerígeno”, relata. “A gente trabalhava com tanta vontade, mas a gente estava se matando também”, completa ele que hoje é presidente da Abrea/SP (Associação Brasileira de Expostos ao Amianto).
Uma das contribuições do Seminário é mostrar que o processo de mudanças sociais passa pela preservação da memória e por uma educação em que o trabalhador deve ser sujeito do processo educativo, com a valorização do seu saber.
Para o professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, José Roberto Pereira Novaes (Beto Novaes), o uso da imagem na educação é instrumento pedagógico para chamar pessoas a essa luta. “Trazer para o cenário pessoas que não têm nenhum tipo de informação a não ser dos grandes meios de comunicação é um desafio”, afirma. Em seus documentários, ele dá voz aos trabalhadores.
“Olhar para a nossa história nos ajuda a compreender onde estamos e de que forma chegamos até aqui, para não cometer os mesmos erros. Este evento é um momento de reflexão e de defesa da democracia, que deve estar presente em todas as esferas da sociedade”, conclui o presidente da Fundacentro, José Cloves da Silva. “Resgatar o passado, para ressignificar o presente, mantendo viva as utopias do futuro”, defende Beto Novaes.
Fonte: Fundacentro