Pandemia do coronavírus agravou vulnerabilidades: desde janeiro, os serviços de proteção do Grande ABC registraram 645 denúncias de violações de direitos.
Por Aline Melo – Diário do Grande ABC
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) completa hoje, 13 de julho, 30 anos de existência. Conjunto de direitos para as pessoas com menos de 18 anos, o ECA reconheceu crianças e adolescentes como cidadãos de fato, mas, mesmo após três décadas, muito do que está previsto na lei não se reverteu em políticas públicas para este segmento, avaliam especialistas da área.
Coordenadora técnica do Crami (Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância do Grande ABC), Ligia Maria Vezzaro Caravieri avalia que o ECA é o reconhecimento de que crianças e adolescentes têm seus direitos garantidos, sendo responsabilidade de todos a proteção das mesmas: da família, da sociedade e do Estado. “Rompe-se com o paradigma de não se envolver em situações que, antigamente, as pessoas afirmavam não ter nada a ver com isso”, afirmou.
A psicóloga cita, no entanto, que os avanços no âmbito legislativo não repercutem no cotidiano de crianças e adolescentes, não sendo suficientes para transformar a realidade ancorada em fatores históricos, econômicos, sociais e culturais. “Direitos garantidos pela legislação não foram incorporados pelas políticas públicas de atendimento, que funcionam de maneira deficitária e precária, de tal forma que a criança e o adolescente têm seus direitos violados não apenas pela família, mas também pelo Estado”, completa.
Especialista em gestão de políticas públicas de direitos humanos e segurança pública, além de conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo), Ariel de Castro Alves afirma que o ECA introduziu importantes avanços na realidade do País, como a ampliação do acesso de crianças e adolescentes às escolas públicas; a criação dos conselhos tutelares e das varas da infância e juventude; a diminuição da mortalidade infantil; o reordenamento dos abrigos e das unidades de internação; a instituição de programas e serviços de enfrentamento aos maus-tratos, abusos, exploração sexual e ao trabalho infantil.
“Estabeleceu também obrigações e responsabilizações aos familiares, à sociedade em geral e aos poderes públicos, visando à proteção integral e especial infantojuvenil. Porém, é óbvio que parte significativa do ECA ainda não foi implementada e, muitas vezes, a lei acaba sendo tratada apenas como uma carta de intenções, com baixa efetividade”, pondera.
Para Ariel, um dos exemplos dessa situação é o fato de o estatuto prever destinação privilegiada de recursos públicos para os programas e serviços de proteção de crianças e adolescentes, mas que, segundo o especialista, é descumprido reiteradamente pelas prefeituras e pelos governos estaduais e federal, fazendo do Brasil um dos países mais perigosos do mundo para crianças e adolescentes.
“Estudo divulgado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) demonstra que 32 crianças e adolescentes, com idades, principalmente, entre 10 e 17 anos, são assassinados por dia no Brasil. Em 2019, o Disque 100 recebeu 86,8 mil denúncias de violações dos direitos de crianças e adolescentes. No Estado de São Paulo, foram registrados 2.141 casos de estupros de vulneráveis no primeiro trimestre deste ano”, citou. “Em torno de 2,4 milhões de crianças e adolescentes são explorados no trabalho infantil, conforme dados do Fórum Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil. O relatório Cenário Nacional da Infância e Adolescência – 2019, da Fundação Abrinq, concluiu que 47,8% das crianças e adolescentes (20 milhões), de zero a 14 anos, vivem em situação de pobreza”, concluiu.
A despeito das falhas ainda existentes na aplicação das regras, o coordenador do núcleo de direitos humanos da PUCPR (Pontifícia Universidade Católica) Maringá, Marco Alexandre Serra destaca que o ECA é enorme conquista desde o processo que culminou em sua aprovação. “Antecedeu-lhe, nesta construção, a Constituição de 1988 e a própria Convenção dos Direitos da Criança, aprovada no âmbito da ONU (Organização das Nações Unidas) em 1989.”
Pandemia do coronavírus agravou vulnerabilidades
A pandemia de Covid-19 agravou a situação de populações em vulnerabilidade. Entre crianças e adolescentes, especialistas apontam maior risco de exploração sexual, trabalho infantil, violência doméstica e insegurança alimentar. Desde janeiro, os serviços de proteção do Grande ABC registraram 645 denúncias de violações de direitos.
Conselheiro do Condepe (Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo), Ariel de Castro Alves afirma que a maioria das crianças e jovens de escolas públicas não está recebendo o crédito de alimentação escolar. “Muitas dependiam da merenda até para não passarem fome”, destacou.
O especialista também aponta a subnotificação de casos de violências e negligências no ambiente doméstico, já que as crianças não estão em contato pessoal com os educadores das escolas e creches, que geralmente recebem as queixas e informam aos conselhos tutelares e delegacias, como um dos problemas. “Dificuldades com o ensino a distância, já que muitas crianças e adolescentes não possuem celulares e computadores adequados, acesso à internet e um cômodo apropriado na casa para os estudos. E o poder público não faz nada diante desse aprofundamento de exclusões e desigualdades”, acusa.
Coordenadora técnica do Crami (Centro Regional de Atenção aos Maus-Tratos na Infância do Grande ABC), Ligia Maria Vezzaro Caravieri afirma que, se em um contexto considerado normal, crianças e adolescentes já sofrem agressões físicas, violência psicológica, abusos sexuais e negligência por parte de pais e responsáveis, o contexto da pandemia agrava a situação. “O tempo de convívio é maior, pois muitos pais e mães estão desempregados ou trabalhando em home office. As crianças e adolescentes estão dentro de casa, sem ir para a escola, com possibilidade de lazer reduzida. Tudo isso atrelado ao aumento da vulnerabilidade social e econômica, vira um barril de pólvora, prestes a explodir.”
Lígia lembra que está mais difícil verificar com as crianças e adolescentes como está o ambiente familiar, uma vez que muitos contatos têm se dado através de aplicativos, sendo desta forma, mediado pelo adulto, que pode ser o agressor. “Para falarmos com a criança/adolescente, quando telefonamos, por exemplo, é no telefone do pai/mãe. Desta forma, temos intensificado as visitas domiciliares para acessar a todos os membros familiares. Também temos feito propostas de atividades, jogos, dinâmicas, para potencializar a aproximação afetiva entre crianças, adolescentes e seus pais e responsáveis”, conclui.
Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica) Maringá, Marco Alexandre Serra destaca que uma sociedade estruturalmente violenta exprime-se como tal especialmente sobre as populações vulneráveis. “Crianças e adolescentes encontram-se entre esses grupos.”