Por Vera Lúcia Salerno
Desde 2005 o Brasil adotou a data de 28 de abril como referência para lembrar as vítimas de acidentes e doenças do trabalho.
A Organização Internacional do Trabalho(OIT) já havia escolhido essa data em 2003, com a ideia de reforçar ações de prevenção aos riscos no trabalho, do que a OIT chama de conscientização internacional sobre segurança e saúde ocupacional entre sindicatos, organizações de empregadores e representantes do governo: Dia Mundial da Segurança e Saúde no Trabalho.
Na verdade o movimento sindical no mundo tem organizado desde 1996 ações para homenagear a memória das vítimas de acidentes e doenças do trabalho por meio de mobilizações, campanhas e incentivo à implantação de ações de proteção à saúde e à vida.
Histórico
A origem do esforço em lembrar das vítimas e destacar acidentes evitáveis foi uma explosão ocorrida em mina de carvão nos Estados Unidos em 1968. Dentro da mina estavam 99 trabalhadores e 21 conseguiram ser resgatados. Os outros 78 trabalhadores morreram presos lá dentro. Dezenove corpos nunca foram encontrados.
A mina apresentava problemas desde 1909 (vazamento de gás) mas produzia muito carvão. Em 1954 uma explosão matou 16 trabalhadores, mas a mina continuou funcionando e produzindo muito carvão até 1968, quando houve a explosão que deu origem à iniciativa de homenagear os trabalhadores mortos em acidente de trabalho e reivindicar mudanças que protegessem a vida dos trabalhadores.
Você pode nunca ter tomado conhecimento dessa história dos mineiros mortos, mas certamente conhece outras histórias parecidas: situações de trabalho amplamente conhecidasque põe em risco a saúde e a vida, mas que permanecem as mesmas, com melhorias adiadas a cada dia. E que resultam em sofrimento, invalidez, doenças e morte. A palavra ‘acidente’ deveria ser usada para expressar uma situação inesperada, uma ocorrência imprevista. Mas frequentemente os acidentes são previsíveis, quase esperados, ligados a correria, cobranças excessivas por produção, instrumentos de trabalho que não funcionam como deveriam, espaço de trabalho ruim, organização do trabalho feita por quem não conhece o trabalho.
Estatísticas
No Brasil em 2020 foram notificados por Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) 446.900 casos de acidente de trabalho, dos quais 1.900 com morte. Aposentadoria por invalidez foram 4.200, apenas considerando trabalhadores com registro em carteira de trabalho. É preciso destacar que são mortes e incapacidades permanentes que vitimaram pessoas jovens, a maioria homens saudáveis (porque estavam trabalhando), portanto, mortes, doenças e sequelas de acidentes evitáveis. Não estão incluídas mortes de trabalhadores estatutários (funcionários públicos) nem os que trabalham sem registro em carteira, como muitos da construção civil, entregadores, empregados domésticos e muitos que estão na “viração”, ou seja, fazendo qualquer coisa para sobreviver. Esses talvez estejam em situação de maior risco, por não ter nenhum tipo de proteção.
O pior é que esses números não são verdadeiros. Escondem uma realidade com muitos mais casos. Os acidentes de trabalho, mesmo graves, muito frequentemente não são notificados. Se o acidente acontece num dia e o trabalhador faz o alerta no dia seguinte, geralmente esse acidente “some”, desaparece. Os colegas não lembram, a chefia não viu, passam a duvidar da palavra do trabalhador, será que não aconteceu em casa? Muitas vezes convencem o trabalhador do ‘ato inseguro’, palavras para culpar o trabalhador e tirar toda responsabilidade dos empregadores. E na confusão, não se notifica o acidente ou doença. É a tal da subnotificação, que provavelmente aumentaria
muito os 446.900 casos de acidente de trabalho citados acima.
E as sequelas e mortes por Covid? Covid é doença relacionada ao trabalho apenas para trabalhadores da saúde? Ou para trabalhadores que têm de usar transporte público, que ficam lado a lado com colegas nas linhas de produção, nos refeitórios, nos banheiros? Trabalhadores que lidam com público, em contato direto? São casos de adoecimento relacionado ao trabalho e por isso deve ser emitida CAT.
Mas qual é a proteção que os trabalhadores formais e sindicalizados têm?
Por melhor que seja o contrato de trabalho, por melhor que seja o sindicato da categoria, as leis trabalhistas no Brasil (e no mundo) não protegem mais o trabalhador. A chamada flexibilização das regras, por exemplo de relação entre trabalhador e empregador, dispensa a intermediação do sindicato, força o individualismo em prejuízo do coletivo. E sozinho o trabalhador perde força e acaba se sujeitando às imposições dos seus empregadores.
O INSS tem quase dois milhões de segurados esperando resposta para concessão de algum benefício. O INSS não responde e ninguém obriga a resolver. Portanto mesmo quem paga INSS não tem “direito” de se acidentar ou de adoecer, porque não há garantia de algum auxílio enquanto estiver incapaz para o trabalho. Isto gera um fenômeno chamado presenteísmo, ou seja, o sujeito vai trabalhar com atestado médico no bolso.
As atitudes individuais, de competição, egoístas, são valorizadas. Quem tenta ser solidário é considerado estúpido. A ordem, a regra, é única e indiscutível, tanto do ponto de vista legal quanto de costumes, incentivados por reportagens, artigos, mídias sociais, rodinhas de colegas: SEJA UM VENCEDOR!
Seja um colaborador na empresa onde trabalha. Entregue suas ideias, seu tempo, sua disposição. Trabalhe, trabalhe, vista a camisa da empresa. Mas não adoeça e não morra, porque não haverá amparo a você e à sua família.
O que fazer?
O mundo do trabalho está em processo de mudança, e tudo indica que não há volta. Cabe a cada um de nós escolher como será depois das mudanças. Cada um por sí? Ou um por todos e todos por um?
A única solução é ir contra as regras impostas. Solidariedade, companheirismo, apoio no coletivo, formação de grupos de diálogo e discussão, reuniões, cooperação entre colegas.
Não aceite como natural o ato inseguro. Não aceite a culpabilização pelo acidente, envolvendo você ou um colega. Exija CAT em caso de acidente. Não se furte à luta por condições de trabalho dignas e seguras para todos. É importante relembrar a memória dos que morreram, não por acidente inesperado, mas por situações previsíveis que não foram identificadas nem resolvidas. E ter esperança. Esperança em nós mesmos.
Vera Lúcia Salerno é médica sanitarista, mestre em Saúde Pública (USP), atuou por mais de 30 anos no CEREST Campinas, atualmente é Professora do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP e do curso de Saúde Mental Relacionada ao Trabalho do Instituto Sedes Sapientiae.