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Marisa Letícia, uma brasileira

03/02/2017 às 11h56

Leia artigo da colunista Teresa Cruvinel sobre a vida da Dona Marisa

Por Teresa Cruvinel, colunista

A morte de dona Marisa Letícia é a síntese dolorosa da força do ódio inoculado nas veias do Brasil nos últimos anos contra o PT, contra ela, Lula e a família, contra tudo o que representaram desde 2003. Sua ausência na vida do ex-presidente terá consequências pessoais e políticas, mas haverá tempo para falar de Lula sem Marisa. A hora é de recordar uma mulher do povo, uma brasileira de fibra que silenciosamente ajudou a escrever páginas importantes da história contemporânea. Neste tempo, o aneurisma que era inofensivo há dez anos foi se expandindo sob o martelar constante das injúrias, implicâncias, achincalhes, preconceitos e, finalmente, da perseguição implacável contra os Lula da Silva, indiciados e denunciados sem provas para evitar banir o ex-presidente da política. No limite do insuportável, o corpo foi vencido, o aneurisma rompeu-se. Não é preciso dizer agora o nome de ninguém. Os mais insanos podem ter celebrado, mas alguns não devem ter dormido em paz esta noite. O Brasil anda enlouquecido, mas ainda não perdeu a razão que lhe permitirá tirar conclusões. A hora é recordar Marisa, uma brasileira, que na morte homenageará a vida com a doação de seus órgãos.

A filha de João Casa e dona Regina Rocco Casa, ambos de ascendência italiana, cresceu no pequeno sítio da família em São Bernardo do Campo, vendo o pai cultivava frutas, legumes e verduras para vender no mercado e sustentar a família. Deixou a escola no que hoje seria a sétima série para trabalhar como babá. Depois virou operária numa fábrica de chocolates e dali saiu para trabalhar na prefeitura. Em 1970, deixou de trabalhar quando se casou com o motorista de caminhão Marcos Claudio dos Santos. O casamento só durou seis meses. Numa noite em que dirigia o táxi do pai, ele foi assassinado. Marisa ficou viúva grávida de Marcos, criado como filho por Lula.

Quem conviveu com o ex-presidente já o ouviu contar mais de uma vez a história de como conheceu Marisa. Ele era diretor do sindicato quando recebeu a “loirinha bonita” de que já ouvira falar. Ela havia ido lá outras vezes em busca de documentos que lhe ajudariam a receber algum direito do falecido marido. Lula esticou a conversa, contou que era viúvo também. Sua primeira mulher, Maria de Lourdes, morrera num parto, com a criança, em 1971. Namoraram e se casaram em 1974. Vieram os filhos Fábio, Sandro e Luiz Cláudio.

Era tempo de ditadura e arrocho salarial. A militância sindical de Lula se intensificou com reflexos na rotina da família: reuniões que o faziam chegar tarde em casa, telefonemas fora de hora, viagens frequentes, e ela ali, cuidando da casa, dos meninos e das finanças da família. A luta invadiu o casamento deles e ela se casou com as causas abraçadas pelo marido operário. Houve a greve de 1979 e depois a de 1980, quando o marido ficou 41 dias preso no DOPS, só saindo para ir ao enterro da mãe, dona Lindu. Visitou-o todos os dias. Católica, organizava missas e vigílias. Foi neste ano que fez um curso de introdução à política brasileira na Pastoral Operária de São Bernardo. Se este era o caminho do marido, iria seguir junto. Quando o PT foi criado, costurou a primeira bandeira vermelha com a estrela branca. Depois passou a imprimir camisetas para o partido vender e arrecadar fundos. Militava na base, sem buscar holofotes, à sombra da projeção crescente do marido.

Lula foi candidato a governador de São Paulo, em 1982, e em 1986 foi o deputado constituinte mais votado do Brasil. Ela não veio para Brasília, ficou com os filhos em São Bernardo enquanto ele passava a semana no Congresso. Depois vieram as três derrotas em disputas presidenciais.  Nenhuma foi tão sofrida quanto a de 1989. A campanha do adversário Fernando Collor contratou a ex-namorada que Lula havia tido antes de se casarem , Miriam Cordeiro, para dizer na televisão que ele tentara forçá-la a abortar a filha que tiveram, Lurian. Este episódio violento e pérfido fez Marisa tornar-se ainda mais zelosa da privacidade da família, mais avessa às abordagens da imprensa.

Quando finalmente Lula foi eleito, ela já estava pós-graduada no papel de mulher de um líder. Sabia que não seria fácil mas talvez não tenha imaginado que haveria uma cota de desconforto tão grande para ela própria. Por oito anos, com o aneurisma adormecido, ela suportou, os incômodos do papel de primeira dama. A implicância da mídia e das pessoas “de classe” foi uma constante. Se ela se vestia modestamente, era uma jeca. Quando passou a cuidar mais do visual,  fez uma plástica e mudou o cabelo, era uma deslumbrada com o poder. Se vestia vermelho, sectarismo. Se vestia verde e amarelo no 7 de setembro, populismo. Falava raramente e era criticada por isso. Mas persistiu, certa de que cada vez que, se falasse, seria apedrejada. Por ter plantado no Alvorada uma canteiro de flores vermelha em forma de estrela, foi por longo tempo acusada de revelar assim a confusão entre o público e o privado. Quando resolveu fazer festas juninas na Granja do Torto, forneceu pautas suculentas à imprensa. Nas solenidades e nos eventos, estava sempre ao lado de Lula, discreta porém atenta. E ele, nos discursos, sempre improvisados, deixando o texto dos assessores de lado, nunca deixava de citá-la, de fazer-lhe uma referência afetuosa.  Este “grude” incomodava os críticos. Nos oito anos, ela mostrou clara compreensão de seu papel. Era a companheira de Lula, não uma protagonista política.

Nunca se soube de ingerências de Marisa em decisões administrativas ou de vetos a pessoas. De alguns ela podia não gostar, e não gostava, mas nunca destratou ninguém. O que fazia era separar claramente quem eram os amigos pessoais e quem eram os colaboradores de Lula. Na intimidade, só os amigos entravam, para os almoços de domingo. Os bajuladores da “corte”, em busca de relações que poderiam render prestígio e influência no governo, ela evitava. A cautelosa distância foi chamada de arrogância.

O governo acabou e ela talvez tenha pensado que a vida voltaria ao normal. Por algum tempo, foi quase assim. Lula despachava durante o dia no Instituto Lula e voltava para jantar em casa, ao anoitecer. Em 2013, começou o calvário final. A Lava Jato, as prisões de petistas, as notícias aqui e ali de que Lula seria investigado como  proprietário oculto do sítio de Atibaia e do apartamento  do Guarujá. As investigações finalmente foram oficializadas, alcançando não apenas Lula como ela própria (que comprara a cota do prédio do Guarujá, da qual desistiram depois) e os filhos. A partir da condução coercitiva de Lula para depor,  no ano passado, a tensão tornou-se permanente no lar dos Lula da Silva. A qualquer hora, ele poderia ser preso. Quando gravações de conversa entre Lula e Dilma foram ilegalmente divulgadas, conversas em família, inclusive dela, também vazaram. Detalhes do que havia no sítio frequentado pela família e da reforma no dito apartamento da OAS foram caudalosamente divulgados e em muitos casos atribuídos a exigências dela.  O PT, estraçalhado, começou a cobrar a volta de Lula à presidência para reunir seus cacos. A nova candidatura estava posta mas tudo na vida deles tornou-se incerteza, apreensão e dor.  Resistiam, mas o aneurisma não suportou.